A Era dos Pequenos, Micros e Nano Satélites (3)
Olá leitor!
Segue abaixo a
terceira parte da série de artigos sobre a "Era dos Pequenos, Micro e Nanosatélites" (veja aqui a
primeira parte e a segunda parte) escrita pelo Sr. José Monserrat
Filho e
postada ontem (02/12) no site do “Jornal da Ciência” da SBPC.
Duda Falcão
Notícias
A Era dos Pequenos, Micros e Nano Satélites (3)
José Monserrat Filho*
Jornal da Ciência
02/12/2013
Hoje faremos uma breve viagem no tempo. Vamos visitar o
passado. Para começar, permitam-me aterrissar, em 1989, na Universidade
Internacional do Espaço (International Space University - ISU), criada no
Massachusetts Institute of Technology (MIT), EUA, em 1987, com o entusiástico
apoio do escritor Arthur C. Clarke (1917-2008), autor do conto que deu origem
ao filme "2001 - Odisséia no Espaço". A ISU segue viva e ativa até
hoje em sua sede em Estrasburgo, França, já tendo graduado mais de 3.700 estudantes
de mais de 100 países.
Em meados daquele 1989, vinte anos após dois seres
humanos terem pisado na Lua pela primeira vez, apenas dois brasileiros
figuravam entre os cerca de 120 alunos do então segundo curso de verão (dois
meses e meio) da ISU: Antônio Fernando Bertachini de Almeida Prado - hoje
renomado pesquisador, chefe da Divisão de Mecânica Espacial e Controle e
presidente do Conselho de Pós-Graduação do Instituto Nacional de Pesquisas
Espaciais (Inpe) - e eu. Foi uma experiência rica e inesquecível. Tivemos um
painel amplo, atualizado e prático das atividades espaciais em seus muitos e
variados aspectos.
Lá, pela primeira vez, ouvi falar na Universidade de
Surrey, sediada no Reino Unido, como pioneira no desenvolvimento de micros
satélites. Por isso, veio-me a ideia de descer em Surrey, nesta viagem no
tempo, para saber um pouco de tudo que ali aconteceu.
Quem nos conduz no passeio é ninguém menos que Sir Martin
Sweeting, professor, doutor, diretor do Centro Espacial de Surrey e diretor
executivo da empresa Surrey Satellite Technology Ltd (SSTL), hoje controlada
pela EADS Astrium NV. Em 2001, ele proferiu histórica conferência na Academia
Real de Engenharia (parte da Royal Society) sobre o tema "Micros e nano
satélites - Um admirável mundo novo (Micro/NanoSatellites - A Brave New World).
Vamos ouvir trechos do que disse Martin Sweeting (The
Guardian, 10/10/2001):
"No início, a vida surgiu em nosso planeta em escala
molecular e, gradualmente, desenvolveu-se, por via de uma única célula, para
organismos multicelulares, que cooperavam em colônias. Finalmente, apareceram
pequenas criaturas complexas e móveis capazes de aproveitar as oportunidades de
um mundo multidimensional. Através de um processo de seleção natural e apoiadas
por um clima favorável, algumas espécies prosperaram e cresceram de forma
excessiva, culminando com o reino dos dinossauros.
"A história da exploração espacial pelos humanos não
é muito diferente. Ao longo de dezenas de milhares de anos, as primeiras
tentativas da humanidade de compreender o Cosmos se restringiram a observações
intrigantes feitos a partir da superfície de duas dimensões do nosso planeta.
Medidas pequenas, mas essenciais, foram sendo tomadas de modo incremental, e
avanços foram sendo alcançados até que, por fim, a humanidade, no século
passado, soltou-se, logrando acesso limitado à terceira dimensão - como os
primeiros anfíbios - graças ao transporte pela atmosfera. Mas, como a
tecnologia humana se multiplica rapidamente, o próximo e mais profundo passo fora
da nossa biosfera e na direção do infinito do espaço exterior ocorreu apenas
uma geração depois.
"Cerca de 45 anos após os nossos primeiros passos no
espaço, colocamos os pés em outro mundo, exploramos as vizinhanças e espiamos
os recantos escuros do cosmos. Mais perto de casa, estabelecemos um posto
tripulado na beira do espaço e usamos órbitas próximas da Terra para observar a
conduta do nosso planeta (e de seus ocupantes) e prestar serviços de
comunicações e navegação para muitos habitantes do nosso mundo. Os satélites
que passaram então a orbitar a Terra evoluíram rapidamente e, como na era dos
dinossauros, foram se tornando cada vez maiores - espaçonaves de cinco
toneladas custando muitos 100 milhões de dólares eram e ainda são comuns.
"No entanto, como com os dinossauros, o clima mudou
rapidamente na era pós-Guerra Fria e surgiu uma espécie menor, "de sangue
quente", ágil e rápida no pensar, para competir no novo ambiente de
espaço: nascia a era do micro satélite.
"A vida muitas vezes se desenvolve em lugares
surpreendentes, onde em dado momento as condições são precisamente as próprias
para promover um novo crescimento. Os micros satélites modernos emergiram, não
de agências espaciais tecnicamente avançadas e bem financiadas, mas da Universidade
de Surrey. no Reino Unido. Esta não é a hora de contar a cronologia detalhada
do desenvolvimento dos micros satélites na Surrey, mas é interessante refletir
sobre as circunstâncias que catalisaram tal inovação. Como de costume, não
houve um fator único, mas uma confluência de personalidades, ideias,
ferramentas e ambiente, que por coincidência estavam no lugar certo na hora
certa.
"Meu fascínio pessoal tanto pelo espaço, quanto
pelas telecomunicações, mais a percepção de que os dispositivos micro-eletrônicos
emergentes no mercado comercial em meados dos anos 70 permitiram inventar
funções complexas e sofisticadas com requisitos muito reduzidos de massa e
energia, viabilizaram o "sonho" de um pequeno grupo de (então) jovens
engenheiros que, munidos de minúsculo orçamento, pudesse construir, lançar e
operar um pequeno satélite em órbita. Na época, claro, havia muitos profetas do
apocalipse. Poucos acreditavam que esse satélite pequeno e barato, mesmo que
fosse possível, pudesse ter qualquer uso prático importante. Houve até um
debate sobre o que seria precisamente um pequeno satélite. Mas, da mesma forma
que as anteriores observações de Edison sobre a corrente alternada -
considerada "interessante, mas sem nenhum valor prático" -, aquelas
ideias estavam ali para serem desafiadas.
"Os primeiros dois micros satélites da Surrey -
UoSAT-1 e UoSAT-2 - foram projetados e construídos na universidade por pequena
equipe de engenheiros pesquisadores, radio-amadores e acadêmicos. Lançados com
êxito - "de graça" - pela NASA em 1981 e 1984, respectivamente, eles
transportavam cargas desenvolvidas na Surrey para pesquisa e educação,
sobretudo para demonstrar o potencial desses pequenos satélites e também
investigar a adequação dos emergentes artigos de micro-eletrônica disponíveis
no mercado (commercial-off-the-shelf - COTS) para uso no espaço.
"Muito se aprendeu - rapidamente, em primeira mão e
por vezes a duras penas - com essas duas primeiras missões, não só em relação a
problemas técnicos, mas também nas áreas de gestão e finanças. Em 1984, ficou
claro que o governo do Reino Unido não iria adotar um programa nacional de
satélite, independente da Agência Espacial Europeia (ESA), e que a ESA (e as
indústrias aeroespaciais estabelecidas) era extremamente cética quanto à
relevância dos micros satélites.
"Daí que se tornou necessário um modo sustentável de
financiar a Surrey para capacitá-la a continuar o programa de pequenos
satélites com acesso ao espaço a preços acessíveis e a atender às demandas de
aplicações reais. Em 1985, a necessidade de catalisar aplicações industriais e
comerciais mais amplas e de gerar renda regular para sustentar as atividades da
área de engenharia de pequenos satélites na Universidade de Surrey - sem
depender de financiamento público -, estimulou a criação da uma empresa na
universidade, a Surrey Satellite Technology Ltd (SSTL).
"A SSTL forneceu um mecanismo formal para lidar com
a transferência de tecnologias de pequenos satélite dos laboratórios de
pesquisa acadêmica da universidade para a indústria, de forma profissional,
mediante contratos comerciais. De 1984 a 1988, o SERC [Smithsonian
Environmental Research Center] teve repentino interesse pelas possibilidades
dos satélites menores e financiou algumas pesquisas em subsistemas e até mesmo
um centro multi-universitário de pesquisas tecnológicas sobre mini satélites
(T-sat). Mas o projeto tornou-se presa do pensamento convencional, cresceu dez
vezes, virou um monstro e expirou antes de sair do papel. Apesar disso, o
financiamento para pesquisa concedido pelo SERC à Surrey nos anos 80, usado em
investigações essenciais sobre subsistemas de micros satélites baseados em
COTS, gerou, desde então, cerca de 70 milhões de libras de retorno em receitas
de exportação para o Reino Unido via SSTL.
"Incorporando os mais recentes artigos de
micro-eletrônica disponíveis no mercado (COTS), os dois primeiros micro
satélites da Surrey - UoSAT-1 e 2 - utilizaram uma estrutura física bastante
convencional - um "esqueleto" em que se montaram caixas de módulos
contendo os vários subsistemas eletrônicos e cargas que incluíam um complexo
tri-dimensional de interconexões.
"As experiências aprendidas com as duas primeiras
missões, a necessidade de capacitar-se para acomodar variadas cargas úteis de
diferentes clientes, sem ter que redesenhar e requalificar de cada vez a
estrutura do satélite, o atendimento a uma lista de lançamentos-padrão, bem
como a crescente demanda de densidade de empacotamento, compatibilidade
eletromagnética, economia de fabricação e facilidade de integração - tudo isso
levou a Surrey, em 1986, a desenvolver novo projeto modular de micros satélites
com plataforma multi-missão.
"Esse micro satélite modular inovador não tem
"esqueleto", e sim uma série de caixas de esboço padrão do módulo
usinado de alumínio, empilhadas umas sobre outras formando um corpo em que os
painéis solares e os instrumentos possam ser montados. Cada caixa modular
abriga os vários subsistemas de micros satélites - baterias, condicionador de
energia, tratamento de dados a bordo, comunicação e controle de atitude. As
cargas estão alojadas de modo apropriado em módulos similares ou na parte
superior da plataforma, ao lado de antenas e sensores de atitude. O uso de
alumínio dá proteção anti radiação e boa condutibilidade térmica, sendo barato
e fácil de alterar.
"O micro satélite emprega modernos e sofisticados
circuitos eletrônicos disponíveis no mercado, para prover alto grau de
capacidade. As cargas úteis de comunicações e de observação da Terra requerem
plataforma que aponte para a terra e, assim, o micro satélite é mantido em 0.3A
de nadir, empregando uma combinação de estabilização passiva de gravidade
gradiente (que usa um boom de seis metros) e de circuito fechado de
amortecimento ativo que usa eletroímãs operados pelo computador de bordo. A
determinação da atitude é provida pelo Sol, por sensores do campo geomagnético
e de câmaras do campo estelar, enquanto a posição orbital é determinada de
forma autônoma em ± 50 metros por um receptor GPS de bordo.
"A energia elétrica é gerada por quatro painéis de
GaAs de painéis solares montados em corpo único. Cada painel produz ~35W,
armazenados numa bateria recarregável NiCd 7Ah. As comunicações são apoiadas
por uplinks de VHF e downlinks de UHF, usando protocolos de link de pacote
totalmente protegidos de erros, que operam em conjunto com terminais em
estações de solo baseadas em PC. O sistema de manuseio de dados a bordo (OBDH)
é a chave para a capacidade sofisticada do micro satélite.
O computador de bordo OBDH 80C386, coração do sistema,
executa um sistema operacional multi-missões em tempo real com um disco de RAM
CMOS em estado sólido. Há, além disso, um computador secundário a bordo, para
compartilhar tarefas de computação intensiva e atuar como um back-up completo.
A principal característica da filosofia OBDH é que todo o software a bordo do
micro satélite é carregado após o lançamento e depois pode ser atualizado e
recarregado à vontade pelo controle da estação de solo.
"Normalmente, o satélite é operado pelo principal
computador OBC-386 e, em tempo real, pelo sistema operacional multi-missões.
Todas as instruções de telecomando são registradas em um "diário" na
estação de solo e, a seguir, transferidas ao OBC do satélite para execução
imediata ou, mais comumente, em algum momento no futuro. A telemetria dos
sistemas e cargas a bordo da plataforma é igualmente recolhida pelo OBC-386 e
transmitida de imediato ou armazenada no disco RAM enquanto o satélite estiver
fora do alcance da estação de controle. Os computadores OBC também operam os
sistemas de controle de atitude segundo os algoritmos de controle que acolhem
os insumos (inputs) de vários sensores de atitude e, em seguida, agem de acordo
com eles. Assim, esse ambiente OBDH permite que um minúsculo micro satélite
opere de modo grandemente complexo, flexível e sofisticado, habilitando o
controle totalmente automático e autônomo dos sistemas de satélites e cargas
úteis.
"As últimas plataformas SSTL de micros satélites
ampliaram os subsistemas de apoio das comunicações de maior taxa de dados nas
bandas S e X, o controle de atitude em três eixos que usa reação e volantes de
inércia, a navegação autônoma que usa receptores de bordo GPS e propulsores de
gás frio para manobras orbitais.
"Graças às missões regulares (quase anuais), as mais
recentes gerações de componentes industriais podem ser introduzidas no satélite
para propiciar saltos na capacitação - mas sustentadas a cada vez pela herança
acumulada dos subsistemas que voaram no espaço antes. A arquitetura em camadas
resultante alcança alto desempenho com redundância operacional, mas por meio de
tecnologias alternativas e não por simples duplicação.
"Esse projeto modular de plataforma de micros
satélites voou pela primeira vez em 1990 e desde então foi utilizado com êxito
em 18 missões bem distintas, cada uma delas com diferentes necessidades de
carga útil, permitindo que a espaçonave vá da solicitação inicial até a órbita
(order-to-orbit) de forma regular em cerca de 12 meses.
"Entre 1990 e 2000, os micros satélites de Surrey
desenvolveram continuamente suas capacidades, alcançadas gradualmente mediante
lançamentos regulares. A ênfase sempre foi colocada sobre o uso de componentes
COTS cuidadosamente selecionados, associado com um projeto de sistema
resistente a falhas, um processo de qualidade total adequadamente dimensionado
e um ethos de gestão mais típico da indústria de tecnologia da
informação."
"E o que dizer do futuro?", pergunta Martin
Sweeting ao final, e responde:
"Por enquanto, o grande satélite, ao lado de seus
irmãos menores, ainda é necessário para prover comunicações de alta potência
para pequenos terminais móveis ou de TV, a imagem da Terra com resolução
inferior a um metro, e transportar instrumentos científicos que exigem grandes
aberturas ou pesado sensores. Mas seus dias podem estar contados.
Não há dúvida de que os insetos são a espécie mais
bem-sucedida na Terra: eles viram os dinossauros indo e vindo e, hoje, superam
em número os seres humanos. Um único inseto, claro, raramente tem qualquer
impacto significativo - mas uma horda de gafanhotos é muito diferente.
"Os atuais sistemas micro-eletro-mecânicos (MEMS) e
as nano-tecnologias emergentes, impulsionados por demandas industriais e de
consumo terrestres - não espaciais - vão em breve tornar realidade os pico e
fempto satélites produzidos em massa, menores que um cartão de crédito.
"Um único desses satélites tem pouca aplicação
prática, mas uma nuvem de femptos - coabitando o espaço - satélites com núcleos
de IP intercambiáveis, inter-comunicações coerentes e o conhecimento de posição
relativa precisa promete alta resistência a falhas, entidade reconfigurável em
órbita em tempo real, que pode rapidamente se adaptar às demandas extremamente
dinâmicas - para serviços de comunicações, sensoriamento remoto por radar ou
observações ópticas. Não haverá mais satélites fixos e de grande configuração.
E os dinossauros estarão no museu."
*José Monserrat Filho é chefe da Assessoria de Cooperação
Internacional da AEB, vice-presidente da Associação Brasileira de Direito
Aeronáutico e Espacial, e diretor honorário do Instituto Internacional de
Direito Espacial, membro pleno da Academia Internacional de Astronáutica
Fonte: Site do Jornal da Ciência de 02/12/2013
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