Programas Espaciais: Objetivos - Artigo

Olá leitor!

Trago agora para vocês o primeiro capítulo de uma interessante série de cinco artigos escritos pelo Eng. Mecânico Leandro Guimarães Cardoso analisando sob sua ótica os tipos de objetivos que um programa espacial pode tentar atingir, o que isto implica na sua formulação, e a definição final do que poderiam ser os objetivos do Programa Espacial Brasileiro. Vale a pena conferir.

Duda Falcão

Programas Espaciais: Objetivos

Leandro G. Cardoso*
07/11/2012

1) Introdução:

Desde a década de 60 do século passado o Brasil vem desenvolvendo atividades no setor espacial, tanto na área de satélites quanto na de veículos lançadores (foguetes), no que é conhecido hoje como Programa Espacial Brasileiro ou PEB. Mas apesar de termos iniciado nosso programa praticamente na mesma época que países como Japão, China e Índia, os resultados obtidos até agora pelo PEB estão muito aquém dos alcançados por estes países, e nos últimos anos fomos superados até mesmo por nações menores como Israel, Irã e Coréia do Norte, que já colocaram seus satélites em órbita usando lançadores próprios enquanto o Brasil ainda espera conseguir realizar este feito em algum momento nos próximos anos, sem sequer ter ainda uma data definida.

E além do insucesso no lançamento de satélites outras atividades no setor espacial em que o Brasil se prontificou a participar tiveram também resultados insatisfatórios, se é que tiveram algum, como a malfadada participação brasileira no Programa da Estação Espacial Internacional (International Space Station ou ISS), do qual após anos de inércia sofremos a humilhação de sermos convidados a nos retirar. Ou a parceria com a China nos satélites de observação da terra CBERS-3 e 4, em que após pleitear o aumento da participação brasileira para 50% acabamos não conseguindo entregar os componentes prometidos no prazo, atrasando os lançamentos que deveriam ter sido efetuados a partir de 2007 e cujo primeiro deve acontecer apenas agora em 2012. Isto inclusive estremeceu as relações dos responsáveis pelos programas espaciais da China e do Brasil, com os chineses ameaçando levar o programa à frente sozinhos.

Fica assim difícil contestar os que dizem que o PEB pode ser considerado até aqui como um inegável fracasso, apesar da retórica oficial do governo em sentido contrário, a qual incluiu ações de cunho eminentemente propagandístico como o vôo do astronauta brasileiro Marcos Pontes até a ISS em um foguete russo como passageiro pagante. Durante muito tempo este fracasso tem sido atribuído por todos os que se preocupam em opinar sobre o assunto à insuficiência das verbas alocadas ao programa, aos boicotes internacionais com relação à aquisição de tecnologia espacial por nosso país, ou à pura e simples ineficiência dos órgãos governamentais responsáveis. Contudo, a questão mais importante relativa à avaliação dos resultados obtidos e principalmente dos que ainda se espera obter com o PEB nunca são realmente colocadas, o que tem deixado todas as discussões sobre este tema carentes não apenas de um verdadeiro sentido, mas principalmente incapazes de apresentar caminhos e soluções para resolver os problemas e fazer com que todos os anos de trabalho e centenas de milhões de dólares gastos até agora venham a valer alguma coisa.  A verdadeira questão é: O que nosso país espera obter do seu programa espacial afinal?

Este é o ponto mais importante e que, no entanto, quase nunca se vê sendo levantado tanto nas discussões internas dos órgãos governamentais ligados ao PEB (MCTI, AEB, INPE, etc...) quanto na mídia em geral. Para quê afinal o Brasil deseja um programa espacial, e que resultados espera obter com ele?

Ao contrário do que possa parecer as respostas para estas questões não são auto-evidentes, e exigem uma série de considerações prévias que permitam entender a natureza dos programas espaciais em si, como eles são encaixados no âmbito das sociedades que os desenvolvem e quais custos e benefícios são razoáveis se esperar deles. A proposta deste artigo é justamente elaborar estas idéias, deixando mais claros os conceitos envolvidos na execução de programas espaciais e as suas possibilidades, incluindo também informações sobre o histórico dos programas espaciais de diversos países, o estágio atual em que eles se encontram e suas perspectivas futuras. O objetivo é dar aos leitores subsídios para a elaboração de avaliações críticas bem fundamentadas sobre o PEB, bem como para a formulação de propostas para seu desenvolvimento daqui para frente.

2) Razões para a Existência dos Programas Espaciais:

Os diversos países que decidiram se envolver com as atividades espaciais e incorrer nos grandes esforços e custos que elas usualmente exigem o fizeram por uma série de motivos, e a compreensão destes motivos é a base para a avaliação dos resultados obtidos em cada caso, inclusive no caso brasileiro. Para permitir a organização do raciocínio vamos dividir as razões para a criação e manutenção de um programa espacial em cinco categorias, de forma a permitir uma avaliação clara e precisa de cada uma delas. Estas categorias estão listadas abaixo:

i- Desenvolvimento de Tecnologias de Aplicação Militar.

ii- Prestígio/Propaganda Nacional.

iii- Alavancagem do Progresso Tecnológico Geral.

iv- Acesso aos Usos Práticos dos Dispositivos Espaciais.

v- Busca de Lucros Através do Fornecimento de Serviços/Produtos Relacionados ao Espaço.

Estas cinco categorias foram definidas exatamente por poderem ser avaliadas de forma independente umas das outras, embora na prática poucos programas espaciais tenham sido desenvolvidos visando apenas uma única delas, se é que algum o foi. O mais comum é que diversos destes objetivos ou até todos eles sejam perseguidos ao mesmo tempo, e os aspectos práticos específicos apresentados por cada programa espacial reflitam a ordem de prioridade que cada um dos objetivos listados tem para aquele país ou organização em particular responsável pelo seu desenvolvimento. E é importante também perceber que esta é uma relação dinâmica, pois e as prioridades de cada objetivo podem mudar ao longo do tempo e como resultado a evolução de um programa espacial pode mudar de rumo, acompanhando o histórico dos interesses de seus responsáveis e das próprias realizações alcançadas ao longo do caminho.

Na avaliação detalhada de cada uma das categorias serão levados em conta os aspectos tecnológicos diretamente envolvidos com elas, bem como sua contextualização histórica. O que se busca é tornar possível verificar não apenas qual a situação específica dos programas espaciais existentes pelo mundo em momentos definidos, mas também sua evolução ao longo dos anos, aspecto fundamental para compreender sua situação hoje e suas perspectivas de evolução no futuro. Outro objetivo é permitir uma visão clara de como deveria estar montado um programa espacial tendo em vista os objetivos selecionados e sua ordem de prioridades, o que em princípio fornece a própria base para definir o caminho a ser trilhado, os recursos a serem despendidos e os prazos que devem ser perseguidos.

i) Desenvolvimento de Tecnologias de Aplicação Militar:

Em termos históricos o desenvolvimento da tecnologia de mísseis militares foi a principal alavanca a acelerar o desenvolvimento dos foguetes de grande porte nas décadas de 40 e 50 do século passado. Isto embora a pesquisa prática sobre foguetes modernos tenha se iniciado em vários países já na década anterior, com os trabalhos de pioneiros como Hermann Oberth, Robert Goddard e Robert Esnault-Pelterie, motivados principalmente pelo interesse teórico em viagens espaciais. Na Alemanha em particular estes desenvolvimentos permitiram que ao final da Segunda Guerra Mundial os nazistas, impossibilitados de utilizar aviões de bombardeio devido à supremacia aérea dos aliados, passassem a utilizar os famosos mísseis V-2 nos seus ataques a Londres, Antuérpia e alguns outros alvos. Esta arma já apresentava todas as características que seriam vistas depois nos primeiros foguetes lançadores de satélites, como o uso de combustível líquido, turbobombas e guiagem por direcionamento do fluxo de escape do motor, tudo isso apenas em escala um pouco menor. Ela era capaz de colocar uma tonelada de explosivos em um alvo a mais de 350 km de distância, e se lançada na vertical podia ultrapassar com folga os 100 km de altitude, rompendo o que veio depois a ser convencionado como limite do espaço sideral. Ao final daquela guerra foram também desenvolvidas as armas nucleares, e a possibilidade de lançá-las utilizando foguetes deste tipo tornou-se clara para as nações envolvidas no que veio a ser depois chamado de guerra fria.

Após 1945, aproveitando-se dos conhecimentos e da experiência dos cientistas e engenheiros alemães capturados, os Estados Unidos e a Rússia soviética começaram a desenvolver seus próprios mísseis de grande porte, que lhes permitissem enviar suas bombas atômicas uns contra os outros. Pequenos foguetes de combustível sólido já eram usados em ambos os países desde a guerra para aplicações táticas, como bazucas e baterias Katyusha, mas a tecnologia de combustível líquido da V-2 era algo muito mais avançado, permitindo o desenvolvimento de armas verdadeiramente estratégicas. A capacidade de destruir inteiramente cidades inimigas com um único lançamento e sem chances de defesa era um motivador muito forte para justificar o esforço e os custos de desenvolvimento de foguetes de porte realmente grande, capazes de transportar as pesadas bombas nucleares de então a milhares de quilômetros de distância. Na antiga URSS principalmente, que ainda não tinha a perspectiva de desenvolver uma força de bombardeiros estratégicos capaz de rivalizar com a americana, o esforço colocado no desenvolvimento deste tipo de míssil foi bastante intenso. Mas também nos EUA o potencial dos mísseis nucleares estratégicos foi bem percebido, e esforços foram feitos para tornar este tipo de arma uma realidade. Contudo, já naquele tempo os americanos estavam desenvolvendo tecnologias que permitiriam reduzir em muito o tamanho e o peso das suas bombas atômicas, e por isso os mísseis criados para levá-las puderam ser consideravelmente menores que os mísseis russos contemporâneos. Este fato acabou tendo uma grande influência no desenrolar dos eventos da corrida espacial que se desenrolou a seguir.

Primeiramente tanto os Estados Unidos quanto a União Soviética simplesmente copiaram a V-2 alemã, mais para fins de pesquisa do que para utilizá-la como arma em si, pois seu alcance era muito pequeno para ser útil em uma eventual guerra entre nações que ficavam em continentes diferentes. Mas logo em seguida foram introduzidos diversos aperfeiçoamentos em seu projeto, como melhores sistemas de injeção de combustível, eliminação do isolamento térmico dos tanques de oxidante para economizar peso, sistemas de refrigeração do motor mais elaborados, turbobombas mais poderosas, substituição do álcool por gasolina ou querosene como combustível, alívios estruturais, melhores sistemas de guiagem e controle e finalmente grande aumento de tamanho. Mas o oxidante utilizado para queimar o combustível ainda era o mesmo oxigênio líquido (LOx) utilizado pela V-2, pois não se dominavam ainda as tecnologias necessárias para empregar outros tipos de mistura.

Foram os mísseis de grande porte desenvolvidos nesta época os primeiros veículos capazes de lançar cargas ao espaço. A tecnologia, contudo, ainda estava em desenvolvimento, e seus requisitos operacionais não podiam ser muito restritos ou os projetos se tornariam inviáveis. Por isso estes foguetes de primeira geração, como o R-7 soviético ou o Atlas e o Thor americanos precisavam de longos tempos de preparação antes de poderem ser enviados contra o inimigo, principalmente devido à necessidade de serem abastecidos de LOx antes do lançamento. Isto os tornava muito vulneráveis a ataques preventivos, o que era uma importante limitação em termos militares mas não era um problema do ponto de vista da exploração espacial, e eles prestaram e ainda hoje prestam grandes serviços enviando instrumentos e astronautas ao espaço.

As restrições para o uso militar destes primeiros foguetes logo se tornaram evidentes para seus operadores. Para superá-las foram desenvolvidos novos modelos que utilizavam exóticos combustíveis estocáveis como ácido nítrico fumegante, tetróxido de nitrogênio e hidrazina, que por se manterem líquidos à temperatura ambiente podiam ser carregados em mísseis que permaneciam meses ou anos prontos, aguardando apenas um sinal para o lançamento. Como estas substâncias possuem uma densidade maior do que o LOx e o querosene além de permitirem a simplificação ou eliminação de alguns sistemas como o de ignição, os mísseis que as empregavam eram também mais compactos, podendo portanto ser mais facilmente alojados em silos subterrâneos protegidos. Esta ainda não era a solução ideal, pois estes foguetes de segunda geração eram relativamente frágeis, seus combustíveis tinham fabricação complicada e sua manipulação era muito perigosa, tendo sido causa de diversos acidentes graves. Mas isto não impediu que diversos modelos deles fossem construídos em grande quantidade e instalados. Além disso, apesar de também terem sido criados visando prioritariamente o uso militar seu desenvolvimento aconteceu anos após os foguetes de primeira geração, e eles muitas vezes apresentavam nítidas vantagens sobre os projetos mais antigos do ponto de vista da capacidade de carga e da confiabilidade, além de estarem facilmente disponíveis por serem produzidos em série. Por isso mísseis como o Titan-II americano ou os SS-9 e SS-18 soviéticos vieram a ser também adaptados para o lançamento de cargas espaciais, apesar dos problemas com o alto custo e a periculosidade de seus combustíveis.

Finalmente, a partir da década de 60 entraram em serviço nos EUA os mísseis que utilizavam combustível sólido como o Polaris e o Minuteman, mais tarde substituídos ou complementados pelos Trident e Peacekeeper, que podem ser transportados e estocados quase indefinidamente em total segurança e lançados com apenas poucos segundos de aviso prévio. Ainda que em geral sejam ligeiramente menos eficientes e possam em princípio levar menos carga que os foguetes de combustível líquido, os foguetes de combustível sólido se tornaram e são até hoje a tendência dominante no desenvolvimento de mísseis militares.

Contudo, embora o projeto conceitual de motores-foguete de combustível sólido seja em princípio mais simples que os de combustível líquido, pois no fundo aqueles não passam de um tubo cheio de combustível fechado de um lado e com uma tubeira do outro enquanto estes são cheios de tanques, tubos, válvulas, turbinas e junções ligando tudo isso, a infra-estrutura de manufatura e testes necessária para que eles possam ser construídos é bastante específica e consideravelmente mais complexa. Isto porque com combustíveis sólidos não é possível construir e testar separadamente de forma realista os diversos componentes dos motores, incluindo o próprio grão combustível, como se faz no caso dos motores de combustível líquido. Nestes últimos apenas uma parte muito pequena de todo o foguete (o interior dos motores e seus sistemas de alimentação) é submetida às pressões e temperaturas extremas da queima dos combustíveis, enquanto no caso do combustível sólido toda a estrutura do “corpo” do foguete chamada estojo, bem como a sua tubeira de escape, tem que sofrer todos estes esforços. Também as vibrações geradas pela combustão não podem ser isoladas por suportes flexíveis amortecidos. Além disso, é relativamente fácil desenvolver um motor de combustível líquido menor e depois juntar vários deles na base de uma única estrutura (até 30 motores no caso extremo do foguete lunar soviético N-1), ao passo que com motores de combustível sólido a única forma de unir os motores é formando um “cacho” que depois precisa ser separado para aliviar peso, complicando bastante a sequência de vôo como acontece no brasileiro VLS. E estes motores não podem ser facilmente desligados durante a subida no caso de um deles apresente problemas, o que é corriqueiro em foguetes de combustível líquido.

O próprio grão de combustível em si compõe uma peça complicada de engenharia, pois é composto por uma mistura de materiais desiguais (geralmente sais oxigenados, alumínio em pó, resina polimérica e aditivos) que devem ser triturados e misturados até formar uma massa perfeitamente homogênea e então vazados em um molde para solidificar, sem que se forme nenhuma bolha ou o foguete inteiro pode explodir. Para evitar este problema geralmente são utilizados moldes a vácuo, e o grão inteiro precisa ser cuidadosamente examinado por aparelhos de raios-X especiais. Depois o grão combustível deve ser colocado dentro do motor e este fechado e terminado, o que gera um componente pesado, difícil de transportar ou manusear e que apresenta um permanente risco de incêndio ou de explosão. Já no caso dos foguetes de combustível líquido sua estrutura é volumosa mas muito leve, e sendo abastecidos apenas no momento do lançamento eles são absolutamente seguros durante o transporte, montagem  e manuseio.

Tudo isto torna o desenvolvimento de foguetes de grande porte com combustível sólido mais difícil, caro e arriscado que os de combustível líquido, e seu custo unitário é geralmente maior. Mas do ponto de vista militar as vantagens deste tipo de motor-foguete superam em muito estas desvantagens, e por isso eles foram desenvolvidos e produzidos em grandes quantidades. Os russos também começaram a adotar os mísseis estratégicos de combustível sólido na década de 80 com o Topol, e embora planejem continuar utilizando alguns mísseis antigos com combustíveis estocáveis por mais algum tempo estão hoje no final do desenvolvimento de outros modelos movidos a combustível sólido, como o Bulava e o Yars.

Uma vez que estavam em produção para aplicação militar estes foguetes de combustível sólido passaram também a ser usados em alguns lançamentos espaciais quando isso pudesse ser conveniente, ou seja, principalmente para as cargas inferiores a duas toneladas em órbita baixa. Lançadores como o Scout e atualmente o Pegasus e o Taurus foram e são utilizados para colocar em órbita vários satélites de peso não muito grande. Em alguns casos mísseis retirados de serviço foram também adaptados para esta função. Alguns motores de combustível sólido de grande porte foram e ainda são empregados também como boosters em lançadores bem maiores, como o Ariane-5 e o próprio Space Shutttle, embora diversos estudos indicassem que o uso de combustível líquido nestes casos pudesse ter sido mais econômico. Isto ocorreu em grande parte porque era uma forma de manter ativos os fabricantes de grandes motores de combustível sólido, uma necessidade estratégica para países que pretendem continuar tendo a capacidade de colocar em operação novos mísseis nucleares modernos.

Fora os Estados Unidos, a Rússia e por algum tempo a Inglaterra, que começaram o desenvolvimento de seus foguetes pela primeira geração (lembrando que a Alemanha estava proibida disso após a guerra), todos os demais países que iniciaram programas de foguetes de grande porte optaram ou pelos combustíveis estocáveis ou pelo combustível sólido, pois estavam plenamente cientes das limitações táticas do emprego de misturas baseadas em oxigênio líquido. E é claro que na maioria absoluta dos casos esta escolha era um reflexo direto da intenção de empregar estes foguetes ou pelo menos a tecnologia desenvolvida com eles em mísseis de aplicação militar. A exceção foi o Japão, que optou pelo combustível sólido por considerar seu desenvolvimento mais simples que o dos foguetes de combustível líquido, embora como já discutido isto afinal não tenha se mostrado verdade quando se trata de motores foguetes de maior porte, com mais do que umas poucas toneladas de peso no lançamento.

Este caso do Japão é bastante ilustrativo. Os primeiros desenvolvimentos autóctones daquele país foram focados em motores de combustível sólido devido à simplicidade de seu projeto, como já mencionado, e a família Mu de lançadores de pequeno porte chegou a ser produzida com este tipo de motor. Mas logo se percebeu que o desenvolvimento de foguetes maiores capazes de lançar satélites realmente aplicativos seria muito custoso com o uso desta tecnologia, e os japoneses acabaram por adquirir dos Estados Unidos o projeto do lançador Thor, movido a  LOx e querosene. Versões muito aperfeiçoadas deste foguete ou desenvolvidas a partir dele são até hoje a base do programa espacial japonês. Contudo, a partir do início da década de 90 do século passado o Japão iniciou o desenvolvimento do foguete Mu-5, um foguete de combustível sólido de grande porte capaz de colocar em órbita cargas de quase duas toneladas. Foi alegado na época que o objetivo do Mu-5 seria a redução do custo dos lançamentos espaciais nesta faixa de peso, mas quando o foguete ficou pronto seu custo, como muitos adivinhavam, se revelou maior que o de foguetes equivalentes de combustível líquido já disponíveis no país. Isto gerou uma certa agitação nos meios políticos tanto locais como internacionais, pois era muito evidente que o Mu-5 poderia facilmente ser convertido em um excelente míssil de grande alcance da classe do Peacekeeper americano, e de fato mais de uma autoridade japonesa fez comentários no sentido de que este foguete mostrava a capacidade do país de igualar ou superar os arsenais estratégicos de vizinhos como a Coréia do Norte e a China, caso isto viesse a se tornar necessário. E o retorno da cápsula de amostras da sonda espacial científica Hayabusa mostrou ainda que o Japão possuía a tecnologia para o desenvolvimento de corpos de reentrada, que poderia ser usada no projeto de eventuais ogivas nucleares.

No caso do desenvolvimento de foguetes na França e da China os primeiros resultados práticos foram obtidos com os foguetes que utilizavam combustíveis estocáveis, tendo a França trabalhado independentemente e a China adquirido tecnologia da antiga URSS. Estes desenvolvimentos permitiram o surgimento dos primeiros lançadores de satélites das famílias Ariane e Longa-Marcha respectivamente, embora a França acabasse jamais produzindo mísseis nucleares de longo alcance com motores de combustível líquido. Inicialmente estes países sequer fizeram esforços para dominar os motores-foguete movidos a oxigênio líquido, já que as limitações destes para aplicação militar já eram bem conhecidas. Ao invés disso a França desenvolveu em paralelo também os motores de combustível sólido, mais compactos, visando seu uso nos mísseis lançados por submarinos nucleares, um desenvolvimento que agora a China também está seguindo. Embora os franceses não tenham desenvolvido lançadores de satélites utilizando combustível sólido, este tipo de motor é utilizado nos boosters do foguete Ariane-5, o que significa que a França mantém sua capacidade de desenvolver e construir mísseis nucleares de grande alcance realmente modernos.

A Índia iniciou seus trabalhos com foguetes pelos motores menores de combustível sólido, sem esconder de ninguém sua intenção de utilizar esta tecnologia na construção de um arsenal estratégico nuclear. Ela adquiriu depois tecnologia francesa de combustíveis estocáveis, utilizando ambas até hoje tanto em seus mísseis militares quanto nos foguetes espaciais. De forma pouco usual seus principais lançadores de satélites, o PSLV e o GSLV, utilizam uma mistura de combustíveis sólidos e líquidos estocáveis alternadamente em seus diversos estágios. Já a família de mísseis Agni foi desenvolvida usando basicamente combustível sólido, embora pelo menos um dos modelos utilizasse também combustíveis líquidos estocáveis em um de seus estágios. Seu último desenvolvimento, o Agni-V, é um ICBM com três estágios de combustível totalmente sólido.

Mais recentemente Israel, Coréia do Norte e Irã também desenvolveram programas bem-sucedidos de foguetes de grande porte, conseguindo com eles colocar em órbita seus próprios satélites. Em todos estes casos o desenvolvimento da tecnologia também teve como principal motivação as aplicações militares, e por isso Israel partiu desde o início para os combustíveis sólidos, que usa até hoje. O lançador de satélites israelense Shavit nada mais é do que uma versão estendida do míssil balístico de grande alcance Jericho-II. Contudo, devido à limitação da capacidade de carga deste foguete o último satélite israelense acabou sendo lançado por um foguete PSLV indiano.

Por outro lado, a Coréia do norte e o Irã iniciaram seus programas de foguetes copiando mísseis soviéticos Scud aos quais tiveram acesso durante a guerra fria, e que utilizavam combustíveis líquidos estocáveis. Os lançadores de satélites desenvolvidos por ambas as nações baseiam-se em versões aperfeiçoadas e estendidas deste míssil, com a adição de outros estágios suplementares. Somente agora o Irã está desenvolvendo seus mísseis de combustível sólido de grande porte, militarmente mais eficientes.

Para resumir, pode-se dizer que quando o objetivo do programa de foguetes é o desenvolvimento de aplicações militares as características mais importantes buscadas são a praticidade de uso, a segurança no transporte/manuseio e a rapidez do disparo. Por outro lado, desempenho e custos não são prioritários para as aplicações bélicas, principalmente quando se imagina dotar os mísseis com ogivas nucleares. Todas estas características favorecem os motores-foguetes de combustível sólido, e para usos militares este tipo de combustível é hoje praticamente a única escolha, sendo que apenas alguns poucos modelos mais antigos de mísseis usando combustíveis líquidos estocáveis estão ainda em operação. Atualmente apenas países pobres e sem acesso às tecnologias mais modernas, como a Coréia do Norte, ainda insistem na utilização de combustíveis líquidos estocáveis no desenvolvimento de mísseis de maior porte. Isso apesar das grandes dificuldades de desenvolvimento, produção e operação de motores foguete de combustível sólido maiores.

Em princípio as questões de dificuldade de manuseio e desempenho tornariam os foguetes de combustível sólido desenvolvidos para uso militar inadequados para aplicação como lançadores de satélites. Principalmente no caso de motores-foguete realmente grandes, com mais do que dez ou quinze de toneladas de combustível no lançamento, a complexidade da infra-estrutura de fabricação e testes necessária, além de seu custo, contra indicaria a adoção de combustível sólido para aplicações espaciais, pois a partir deste tamanho e peso é mais simples e barato desenvolver foguetes de combustível líquido. Em muitos casos, porém, as nações fazem questão de ter esta tecnologia à sua disposição para aplicação bélica, por razões geopolíticas, e depois o simples fato dos motores de combustível sólido de grande porte já estarem disponíveis para eventuais usos militares os torna a escolha natural (e por vezes a única) para cumprir também a missão de lançar satélites. O que, aliás, é uma excelente desculpa para se manter sua infra-estrutura de produção operando em tempo de paz com baixo custo político.

A Situação do Brasil:

Tendo sido iniciado sob os auspícios da Força Aérea Brasileira durante a época do governo militar e da guerra fria, o programa espacial brasileiro tinha desde o princípio como um de seus  objetivos desenvolver tecnologias que pudessem vir a ser utilizadas na produção de mísseis estratégicos de porte maior que os pequenos foguetes táticos que já estavam em produção para uso do Exército Brasileiro. Este era o objetivo principal vislumbrado pelo alto comando militar do país na época, e vieram daí decisões como a escolha do uso somente de combustível sólido, que foi bastante acertada para a aplicação em vista naquele momento, pois este tipo de combustível já estava bem estabelecido como solução ideal para uso militar. Mas embora visando possíveis projetos bélicos, em nenhum momento os responsáveis pelo programa de foguetes brasileiro chegaram a realmente propor a construção de um míssil de médio ou grande porte para uso prático, pois devido ao quadro político internacional ser favorável ao país esta necessidade jamais surgiu de forma explícita. Assim, desde o princípio os trabalhos desenvolvidos tiveram um cunho basicamente acadêmico, sem visar nenhum objetivo aplicado (uma arma operacional). Ao invés disso a equipe de pesquisadores e engenheiros responsável pelo desenvolvimento se concentrou em dominar as técnicas básicas de projeto e produção necessárias para a construção de grandes foguetes, como a fabricação do combustível, a termodinâmica da propulsão, o cálculo das estruturas, os sistemas de guiagem, etc... , e isso também era mais fácil usando o combustível sólido, pelo menos enquanto o tamanho dos motores projetados fosse relativamente pequeno. Esta equipe pôde assim se concentrar em dar ao país a autossuficiência na tecnologia espacial, sem se preocupar diretamente com aplicações militares.

O resultado mais avançado destes trabalhos até a década de 80 foi o desenvolvimento do motor-foguete S-40, com 1 metro de diâmetro, que serviu como primeiro estágio do foguete Sonda-IV lançado pela primeira vez em 1984. O sucesso deste motor mostrou que o País dominava as tecnologias necessárias para a construção de mísseis militares de médio alcance (até 3000 km). E motores até maiores tornavam-se perfeitamente possíveis. Ainda durante a fase de desenvolvimento do S-40 foi tomada a decisão de utilizá-lo como base para um foguete lançador de satélites, cuja configuração começou a ser estudada e que veio a se constituir no projeto do VLS.  Mas é muito importante ficar claro que o objetivo do desenvolvimento do motor S-40 em si não era especificamente o de lançar satélites, embora nas configurações corretas ele permita a construção de foguetes capazes disso, mas apenas o de demonstrar que o país dominava a tecnologia de motores foguete de maior porte.  Este motor, que já incluía tudo o que é necessário para a construção de mísseis de grande alcance, como um sistema de controle de atitude, foi testado com sucesso como primeiro estágio do foguete de sondagem Sonda-IV, lançado pela primeira vez em 1984.

A decisão de avançar do sonda-IV para o VLS sem dúvida foi em parte motivada pela vontade de manter a capacitação da equipe responsável pelo projeto deste tipo de foguetes no Brasil, bem como a infra-estrutura para sua fabricação. O veículo resultante teria uma capacidade de carga pequena demais para a grande maioria das tarefas aplicativas, além de ser pouco confiável devido à sua complexidade, mas poderia sem muitos problemas ser empregado no lançamento de pequenos satélites experimentais de baixo peso (de até 350kg), o que permitiria o desenvolvimento de uma tecnologia básica de projeto e construção de satélites no país.  Infelizmente, por vários motivos o VLS jamais se tornou operacional, e ainda não é absolutamente garantido que um dia o venha a ser. Entretanto, a manutenção do programa, mesmo em ritmo muito lento após os diversos revezes que ele sofreu, teve como mérito manter um mínimo de capacitação do país nesta área. E mais recentemente o início do desenvolvimento do novo motor S-50, que deverá carregar mais de 10 ton de combustível e será utilizado no foguete VLM-1, encomendado pela agência de pesquisas alemã DLR para o experimento Shefex-III relacionado a veículos hipersônicos e sistemas de reentrada atmosférica, mostrou que esta capacitação deve de fato ter sido mantida ao longo das últimas décadas.

Portanto, pode-se dizer apesar do fracasso até agora do Programa Espacial Brasileiro no que tange ao lançamento de satélites, um objetivo inicial importante, que era dar ao país a capacidade de desenvolver e construir mísseis de médio/grande porte, foi atingido já lá atrás na década de 80. E tudo indica que esta capacidade será mantida no futuro, através da construção do foguete VLM-1 para uso em aplicações espaciais leves, sendo este foguete até mais importante que o próprio VLS neste aspecto, por empregar um motor maior e construído de acordo com melhores práticas de engenharia, já que o motor principal do VLS, o S-43, era uma derivação do já antigo S-40 construída de forma semi-artesanal. Com 28 toneladas no lançamento e 3 estágios na versão inicial, o VLM-1 não é muito diferente do míssil intercontinental americano Minuteman, que foi desenvolvido na década de sessenta do último século mas está em plena operação até hoje. E com o próprio experimento Shefex-III, bem como o desenvolvimento pelo IAE do microlaboratório orbital recuperável SARA, nosso país estará também dominando as tecnologias necessárias para a construção de veículos de reentrada. Assim, se tudo correr bem, nos próximos anos o Brasil terá atingido basicamente o mesmo patamar do Japão no que tange a tecnologias de mísseis militares estratégicos, não tendo desenvolvido nenhum modelo específico para esta aplicação, porém demonstrado plena capacitação para fazê-lo em curto espaço de tempo caso isso se mostre algum dia necessário. E esta sem dúvida será uma realização de certa importância geoestratégica para um país que entre outras coisas pleiteia uma vaga permanente no conselho de segurança da ONU, onde todos os demais países já possuem esta capacitação.

Portanto, se avaliado do ponto de vista exclusivamente do desenvolvimento de capacitação para aplicações militares o PEB não parece um fracasso tão grande como quando avaliado à partir de outros pontos de vista. Caso de fato os projetos do VLM-1 e do SARA se concretizarem de forma adequada nos próximos anos, ainda mais se a participação da indústria nacional for intensa como planejado, estará demonstrado que o Brasil possui sim a capacidade de desenvolver mísseis estratégicos perfeitamente adequados caso isto venha um dia a ser necessário. Desta forma um dos principais motivos para a própria implantação do PEB terá sido alcançado. O eventual lançamento bem sucedido do foguete VLS em si, por décadas o objeto central do PEB, para este objetivo específico é basicamente irrelevante.

Próximo Capítulo: Prestígio/Propaganda Nacional

* Leandro Guimarães Cardoso - Nascido em 26/09/1964, formado em engenharia mecânica pela Universidade de Brasília (UnB) em 1987 e com pós-graduação em análise estrutural pela COPPE entre 1988 e 1991. Trabalhou no departamento de projetos de uma fábrica de motores até 1997, e desde então é sócio de uma empresa de consultoria em projetos e engenharia, na qual ocupa o cargo de diretor técnico. Atua na implantação de novas tecnologias, como modelamento 3D e a simulação, nos mais variados segmentos da indústria. Entusiasta de história, assuntos espaciais em geral e tecnologia de foguetes em particular desde criança, lê tudo que encontra sobre o assunto. Escreve artigos de divulgação técnica e ficção científica.

Comentários

  1. Interessante o que ele falou. Talvez a exploração espacial não seja tão importante para o governo brasileiro como é a construção de foguetes para fins de "defesa". Ele mostrou uma visão otimista do PEB, mas deixa claro que somente daqui a alguns anos teremos chão para alavancar como potencia espacial.

    ResponderExcluir

Postar um comentário